Pacote Antifeminicídio e populismo penal

No dia 09 de outubro de 2024, foi sancionada a Lei nº 14.994, apelidada popularmente de “Pacote Antifeminicídio”[1], a qual promove substantivas alterações em diversos diplomas legais que compõem o ordenamento penal nacional, com o intuito de tornar mais rigoroso o combate à violência de gênero.

Dentre as mudanças, destaca-se o agravamento das punições aplicadas às condutas típicas praticadas “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”, merecendo destaque a primeira pena máxima de 40 anos incluída no art. 121-A do Código penal, após a autorização da lei 13.964/2019; a previsão do feminicídio como crime autônomo, assim como a inclusão do requisito de cumprimento de 55% da condenação para progressão de regime.

Apesar do posicionamento social que essa modificação legal em um primeiro plano parece assumir, a referida lei deixou de apresentar valiosos detalhamentos às figuras penais já existentes, de modo a aperfeiçoar a norma que permanece pouco precisa e dependente de interpretações subjetivas para a compreensão de expressões amplas como “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. O que se vê, de modo geral, é a apresentação de resposta legislativa-penal mais grave para a violência de gênero como forma utópica de contenção da criminalidade.

O distanciamento do direito penal com dados empíricos de maneira a atender o populismo penal certamente acabará acarretando o aumento significativo da população carcerária e provavelmente o oposto do desejado. A nova lei foi publicada quando os dados indicavam uma redução de 10% da população carcerária presa por violência doméstica, analisando as informações divulgadas nos relatórios penais da SENAPPEN nos anos de 2023 e 2024.[2][3]

Essa crescente no punitivismo se apodera de pautas feministas, principalmente das que deixam de estabelecer conexão entre a violência de gênero e a violência sistêmica desencadeada por outras forças de opressão, para institucionalizar o encarceramento em massa e, nessa toada, apenas acabam por gerar novas fontes de violência. Em outras palavras, a fixação de penas mais gravosas aos delitos praticados em razão da condição de mulher ocasiona, tão somente, mais um ciclo de violência que se perpetua em escala cada vez maior.

Nas palavras da autora feminista Rita Segato, esse recrudescimento penal tenta “eliminar um sintoma sem eliminar a doença”[4]. Penas mais gravosas e uma progressão de regime mais tardia apresentam como único resultado um aumento torrencial da população carcerária nacional, a qual já ultrapassa em muito o contingente adequado às unidades prisionais existentes, acabando por agravar o estado de coisas inconstitucional que é o sistema carcerários Brasileiro.

Nessa esteira, destaca-se viés políticos que essas modificações possuem, evidenciado no pensamento de Maurício Martinez, disposto no célebre livro “Depois do Grande Encarceramento” organizado pelos professores Vera Malaguti e Pedro Vieira Abramovay:

“O novo caramelo que se oferece nas campanhas eleitorais é um veneno que pode matar, mas que é aceiro por uma população presa do pânico porque é apresentado como um remédio para aniquilar monstros de um zoológico no qual se incluem, principalmente, terroristas, narcotraficantes ou violadores de mulheres e de meninos, e, por isso o populismo punitivo se caracteriza pelo oferecimento de penas altas pela mudança da utopia ressocializadora pela inocuização da maldade através de penas degradantes; pela reinvindicação das vítimas para contrapô-las aos direitos dos selecionados como maus; pela privatização das tarefas de controle ao delito; pelo assinalamento aos operadores judiciais do fracasso do “combate à criminalidade”; (…) E como se trata de ganhar consensos e votos, esse populismo tem como destinatário principal as massas e as maiorias apresentadas como potenciais vítimas.”[5]

Apenas para não distanciar os dados estatísticos do presente artigo, segundo o último relatório de informações penais – RELIPEN da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) a população penal em 30/06/2024 era de 663.387 presos para uma capacidade de vagas de 488.951, representando um déficit de vagas significativo de quase 30% do sistema.

A previsão de punições mais rigorosas acaba por reforçar ideias patriarcais acerca das vítimas, baseadas na presumida fragilidade e vulnerabilidade atribuída ao gênero feminino, o que gera novos estereótipos de gênero a serem analisados quando da imputação desses delitos. Ou seja, em todos os prismas e perspectivas, a utilização de penas mais graves para combater a violência contra mulheres se mostra prejudicial à sociedade, já que não se mostra capaz de nem ao menos diminuir os índices de cometimento desses delitos.

Expostas as críticas teóricas a essa mudança legislativa, passa-se a demonstrar os problemas práticos que o mero aumento das reprimendas ocasionam, retornando assim à permanência da problemática da ausência de clareza nos tipos penais abarcados por esta nova lei, a qual poderia ter sido sanada com essa norma e não o foi.

Nessa esteira, é de especial relevância trazer à baila de maneira mais específica os aumentos de pena mínima e máxima destinada aos delitos correlatos, para além do feminicídio, o qual passou a ser o crime com a maior reprimenda penal do país. São eles: a lesão corporal qualificada por violência doméstica ou por misoginia; a ameaça, a calúnia, a difamação, a injúria e as vias de fato praticadas em contexto doméstico ou por motivo de misoginia; e o descumprimento de medidas protetivas de urgência. 

Com a nova legislação, os parágrafos 9º e 13º do art. 129 do Código Penal, que previam, respectivamente, 03 meses a 03 anos de detenção e 01 a 04 anos de reclusão, passaram a possuir como pena de 02 a 05 anos de reclusão, representando um aumento significativo de 700% e 100% da pena mínima, respectivamente.

Essa mesma dosimetria passou a representar também a pena atribuída ao descumprimento das medidas protetivas, previsto no art. 24-A da Lei nº 11.340/06, o qual antes tinha como parâmetro legal de 03 meses a 02 anos de detenção. Os crimes contra a honra e a ameaça praticadas contra a mulher agora possuem pena em dobro, enquanto a contravenção penal de vias de fato possui pena triplicada.

Tomando como exemplo a lesão corporal, é possível verificar que houve a equiparação o resultado condenatório cabível às qualificadoras previstas nos parágrafos 9º e 13º, as quais tutelam cenários distintos, que muitas vezes se confundem na sua aplicação pelo poder Judiciário. O primeiro concerne a conduta de lesionar ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

Já o segundo caracteriza a lesão praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do parágrafo 1º do art. 121-A do Código Penal, referente ao feminicídio. Tal previsão legal dispõe que as razões da condição de gênero são consideradas presentes quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

De plano, pontua-se novamente a amplitude dos termos utilizados, como o menosprezo e a discriminação, sem delimitar a abrangência desses termos. Outrossim, a redação destes dispositivos parece conexa, uma vez que, como o próprio parágrafo 13º induz, o intuito de lesionar em função da misoginia pode se valer também de características e dinâmicas domésticas e/ou familiares.

Assim, a coexistência desses artigos antes dessa lei permitia a imputação de pena mais branda em cenários de violência doméstica, em que a vítima não necessariamente precisamente ser do gênero masculino, ou a configuração de reprimenda mais gravosa, diante de conduta praticada contra mulher, seja valendo-se de ambiente doméstico ou de razões de cunho misógino. Agora, considerando que a pena é a mesma, pouco importa a vítima ou as razões que levaram ao cometimento do delito.

Aprofundando ainda mais o tema, há que se ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça entende como plausível a incidência da agravante prevista na alínea “f”, inciso II, art. 61 do Código Penal[6] na segunda fase da dosimetria da pena aplicada à ambos os parágrafos supramencionados, assunto que está fixado pelo julgamento do Ag. Rg. No REsp nº 1.998.980-GO, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, da Quinta Turma, apesar do aparente bis in idem entre as redações.

Em outras palavras, é dizer que em adição aos aumentos de pena promovidos por essa nova norma, já existiam outros métodos de agravamento de punição, os quais não resolveram, em nada, na coibição desses vis atos ilícitos praticados contra mulheres. E mais, perpetuam a vagueza desses tipos penais, cujo escopo é tão vasto que dificulta a imputação da acusação de forma correta e apta nos casos por eles tutelados.

Por conseguinte, conclui-se que o emaranhado legislativo e jurisprudencial que hoje representa o combate penal a violência contra a mulher apresenta algumas falhas, tanto em seu caráter excessivamente punitivista quanto em não se propor a sanar lacunas preexistentes, as quais mantem imprecisas as expressões utilizadas para configurar os tipos penais correlatos. Dessa forma, evidenciando a aplicação prática de tais normais no contexto concreto, prático, tem-se que esse cenário tende a possuir o efeito contrário ao vendido como objetivo da norma, qual seja reter a criminalidade de gênero e conceder às vítimas justiça, uma vez que imbuídos dos mesmos vieses patriarcais e sistêmicos que a própria violência.

O elevado custo social e financeiro do aumento da população carcerária masculina que certamente ocorrerá com o novo ordenamento jurídico seria mais bem utilizado com programas sociais de conscientização, palestras, clínicas especializadas e acompanhamento psicológico dos egressos do sistema por crimes cometidos contra a mulher.

Notas e referências:

[1] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2024/lei-14994-9-outubro-2024-796445-publicacaooriginal-173328-pl.html.

[2] Disponível em https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2023.pdf

[3] Disponível em https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2024.pdf

[4] Disponível em: https://latfem.org/la-carcel-es-una-verdadera-escuela-de-violacion-para-los-violadores/. Acesso em 21/10/2024.

[5] ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 313/314.

[6] Art. 61 – São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

(…) II – ter o agente cometido o crime:

(…) f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; 

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Outras Publicações

Ao longo dos anos, é possível observar uma crescente tendência ao recrudescimento penal, a qual pode, dentre os vários fatores que capazes de ensejá-la, ser consequência do alargamento paulatino da criminalidade nacional. A resposta penal mais gravosa é apresentada como o remédio perfeito para obstar tal cenário, de modo a aquietar os anseios sociais, que clamam pela solução da sensação de perigo.

O clamor popular como agente central para promover a intensificação da intervenção punitiva gera forte influência motora ao Poder Legislativo, o qual passa a apresentar e discutir projetos de novas leis e/ou emendas à Constituição. Em que pese o processo de formação de leis ter como característica cerne a isenção de ideologias, com o fito de sempre promover o melhor regramento à toda a população, é notável que cada vez mais são trazidas à baila questões enviesadas pelas vontades de parcelas da população, as quais representam tão somente a vontade desse fragmento social.

Supostamente pautado nos frágeis argumentos do fortalecimento da justiça e da equidade, permitir a prisão de cidadãos por determinados crimes de forma automática acaba violando o princípio constitucional da presunção de inocência.

Isso porque há em nossa República – por uma escolha política de cunho internacional – o estado de inocência, o que significa que que todo cidadão nasce inocente e só perde essa proteção de direitos humanos com uma decisão condenatória transitada em julgado. Na verdade, o constituinte em 1988, no artigo 5º, inciso LVII, apenas reproduziu o entendimento existente mundialmente desde 1789 no artigo 9º da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

A adoção da presunção de inocência se deu para permitir um julgamento justo, na medida em que a lógica da presunção de culpa, sobre a qual se construiu o “sistema inquisitivo romano-canônico”, tornava dificílima a absolvição.[1]

Não obstante toda luta e garantias conquistadas no passado, o que se presencia atualmente, e pode se pressupor cada vez mais no futuro, é que caminhamos paulatinamente para o retrocesso: como resposta aos anseios da população que se diz imune a prática de qualquer infração penal, são propostos agravamentos a legislação criminal.

Primeiro, permitiu-se – ainda que por curto período – a prisão antecipada por órgão colegiado sem o trânsito em julgado; já no ano de 2019, foi prevista a prisão antecipada por decisão do Tribunal do Júri com pena superior a 15 (quinze) anos[2] em respeito a soberania dos vereditos e, mais recentemente, o projeto de lei 714/2023, em trâmite na Câmara dos Deputados, apensados aos PL´s 991/2024, 1328/2024 e 2988/2024, que pretende modificar o artigo 310 do Código de Processo Penal para tornar obrigatório a decisão denegatório do pedido de liberdade provisória nos casos de crimes hediondos, de roubo e de associação criminosa qualificada.

Até que ponto a busca por segurança pública justifica o sacrifício de garantias individuais e o desrespeito a princípios constitucionais? Essa é a questão principal acerca do perigoso Projeto de Lei 714/2023 e seus 03 apensos.

O primeiro e claro retrocesso proposto é para ampliar o prazo para realização da audiência de custódia de 24 (vinte e quatro) horas para 72 (setenta e duas) horas, em clara violação a resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça.[3]

A audiência de custódia, tardiamente introduzida no Brasil no ano de 2015, representa um instrumento fundamental para garantir os direitos dos presos objetivado avaliar a legalidade, necessidade e a adequação da continuidade da prisão, além de servir para comunicar os excessos eventualmente cometidos durante a prisão.

Nas palavras do professor Thiago Minagé, “o controle judicial imediato de uma prisão cautelar acaba por se tornar uma verdadeira medida tendente a evitar arbitrariedade ou ilegalidade das respectivas prisões (…)”.[4]

Caminhando a passos largos para o passado, o PL 714/2023 impõe a prisão preventiva como regra e sem a devida análise da necessidade e da proporcionalidade da medida, com a seguinte redação para o parágrafo 2º do artigo 310 do CPP:

§ 2° Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, ou nos casos em que o agente for acusado de cometimento de crimes hediondos, roubo ou associação criminosa qualificada, a liberdade provisória deverá ser denegada, com ou sem medidas cautelares.

O projeto apresenta sérias preocupações em relação ao sistema de justiça criminal brasileiro e aos direitos fundamentais dos cidadãos. A violação ao princípio da presunção de inocência, um pilar fundamental do nosso sistema legal e consagrado na Constituição Federal, é sem dúvidas a mais preocupante.

Em um cenário que torne obrigatória a prisão preventiva em casos específicos, como crimes hediondos e reincidência, há completa afronta à essa garantia fundamental. Na prática, inverte-se o ônus da prova, tratando o acusado como culpado até que prove sua inocência, o que resultará em prisões injustas e desnecessárias, ferindo o direito à liberdade de indivíduos.

Outro ponto crítico é o agravamento da superlotação carcerária. O sistema prisional brasileiro já se encontra em uma situação alarmante, com presídios superlotados, operando muito além de sua capacidade, em condições degradantes e insalubres. Dessarte, o aumentar do número de prisões preventivas ocasiona direta contribuição para a piora dessa realidade.

O projeto representa um evidente aumento do poder punitivo do Estado em detrimento das garantias individuais. Ao restringir o direito à liberdade e tornar obrigatória a decretação da prisão preventiva, o projeto abre espaço para abusos e excessos. Em um sistema em que a prisão se torna a regra e não a exceção, aumenta-se o risco de pessoas serem presas injustamente até o trânsito em julgado quando, então, dificilmente serão absolvidas.

É imperativo reconhecer que a aplicação da prisão preventiva deve ser reservada a casos excepcionais, nos quais haja risco concreto à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, conforme preconiza o Código de Processo Penal. A gravidade do crime, por si só, não justifica a privação da liberdade de um indivíduo antes do devido processo legal e do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O PL 714/2023, ao tornar obrigatório a decretação da prisão preventiva, inverte essa lógica, transformando-a em regra a prisão.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, evidenciando que a lógica do encarceramento em massa não tem se mostrado eficaz na redução da criminalidade. É necessário atuar na prevenção do crime, na educação, na inclusão social e na garantia de direitos básicos à população. É mister combater as causas da criminalidade, e não apenas seus efeitos, por meio de ações que promovam a cidadania, o desenvolvimento social e a justiça social. A construção de uma sociedade mais justa e segura depende do compromisso com a efetivação de direitos humanos e da garantia de um sistema de justiça criminal que priorize a reintegração social e a ressocialização do indivíduo, em detrimento da punição exacerbada e da estigmatização social.

Avanços importantes conquistados no sistema de justiça criminal brasileiro, como a audiência de custódia e as medidas cautelares alternativas à prisão foram resultado de anos buscando lapidar um sistema que busca punir a qualquer custo. Ao priorizar o encarceramento em massa, a medida reforça ainda mais a lógica punitiva que tem se mostrado ineficaz no combate à criminalidade.

O projeto representa um perigoso retrocesso para o sistema de justiça criminal brasileiro. Ao ferir o princípio da presunção de inocência, agravar a superlotação carcerária, desrespeitar tratados internacionais de direitos humanos e ignorar a complexidade do problema da criminalidade, a proposta demonstra uma visão meramente punitiva e ineficaz.

A medida aposta no encarceramento em massa como solução simplista para um problema complexo. É preciso resistir a essa ideologia e defender um sistema de justiça que garanta a liberdade, a dignidade e os direitos e garantias fundamentais. Urge reafirmar o compromisso com um sistema de justiça criminal mais justo, humano e eficaz para que a busca por segurança não se faça às custas da liberdade e da justiça.

Não podemos deixar ficar tarde para nos preocuparmos como as mudanças propostas pela Câmara dos Deputados para atender os anseios popular. Devemos agir, como alerta o poema “é preciso agir” de Bertold Brecht.[5]

Notas e referências:

[1] De Moraes, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no processo penal Brasileiro: análise da estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial. Ed. Lumen Juris:2010. Rio de Janeiro. p.60

[2] Artigo 492, I, “e” do Código de processo penal.

[3] Art. 1° Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.

[4] Minagé, Thiago M. Prisões e Medidas Cautelares à luz da constituição. 6 ª Ed – São Paulo: Tirant lo blanch, 2024. P. 261.

[5] Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo

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O indulto presidencial de caráter coletivo, culturalmente denominado indulto de Natal pois publicado em data próxima por decreto do Presidente da República[1], embora não restrito a um por ano[2][3], tem natureza para atingir número indeterminado de condenados, sendo uma das vertentes da clementia principis. Trata-se, portanto, como afirmado pelo Suprema Corte, de instrumento de política colocado à disposição do Estado para reinserção e ressocialização dos condenados que a ele façam jus, segundo a conveniência e oportunidade.[4]

O escopo desse instituto pode ser amplo a critério da conveniência do seu emissor ficando restrito apenas os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e os crimes definidos como hediondos por opção do constituinte[5]. O indulto se caracteriza como ato de governo integrando a categoria de ato administrativo, devendo, portanto, observar os cinco elementos como sujeito, objeto, forma finalidade e motivo.

Para o direito penal no caso do indulto natalino importa observarmos a sua finalidade, podendo ser definido como o objeto pretendido com a edição do decreto e qual o resultado específico pretendido. A atenção deve ser dispensada para verificar se o exercício deste ato discricionário está sendo utilizado para atingir o maior número de pessoas privadas de liberdade.

E essa preocupação está estampada na realidade do sistema carcerário brasileiro que conta atualmente com 852 mil pessoas em cumprimento de pena, sendo que destas 711 mil pessoas cumprem pena em celas físicas[6]. O país possui um déficit de vagas no sistema penitenciário de 354 mil, tendo esse cenário levado o Supremo Tribunal Federal[7] a considerar o sistema penitenciário brasileiro como Estado de coisas Inconstitucional no ano de 2015.

Decorrido quase uma década do emblemático voto do Min. Marco Aurélio que afirmou existir a ocorrência de violação massiva de direitos fundamentais dos presos, resultante de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, considerado o quadro de superlotação carcerária e das condições degradantes das prisões do país, nada mudou neste cenário para reduzir a situação degradante das cadeias públicas brasileiras.

Ao contrário, a política criminal adotada é voltada para aumentar a população carcerária com a edição da lei 13.694/2019, apelidada de projeto anticrime, que enrijeceu o art. 112 da lei de execução penal levando a percentuais elevadíssimos o tempo de cumprimento de pena para progressão de regime, chegando ao patamar de 70% no caso de reincidência de crime hediondo, com vedação de livramento condicional.

Neste mesmo campo da política criminal a recente lei nº 14.843/2024 acabou com o direito de o apenado obter a saída temporária para visitar a sua família, agravando o cumprimento da pena em notória violação ao artigo 3º das regras de Mandela.

Para Diego de Azevedo Simão a “visita à família tem por objetivo a manutenção dos vínculos familiares e afetivos entre a pessoa privada de liberdade e as pessoas com quem possuem vínculo consanguíneo e afetivo”[8]. A visita à família deve ainda ser preservada ao apenado na medida em que a Constituição da República assegura no art. 226 a família como base da sociedade e deve receber a proteção do Estado.

No Estado do Rio de Janeiro a população carcerária ultrapassada 46 mil presos para, tendo apenas 28 mil vagas. O cenário no Estado era tão ruim que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em decisão datada de 22 de novembro de 2018, proibiu o ingresso de novos presos no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no complexo de Gericinó, em Bangú, e determinou o cômputo em dobro de cada de privação de liberdade cumprido no estabelecimento.

E a tendência da população carcerária só tende a aumentar com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal[9] ao fixar o tema 1068 de repercussão geral que a soberania do tribunal do júri justifica a prisão imediata para os condenados pelo Júri, independentemente da pena aplicada e da decisão transitar em julgado.

Esse cenário de caos nas cadeias públicas e que certamente será agravado com o aumento da população carcerária ocasionado pelo recrudescimento das recentes leis introduzidas em nosso ordenamento jurídico e pela decisão do Supremo Tribunal Federal, necessita de contrapeso para reduzir a superpopulação carcerária de modo a atingir a finalidade do tratamento penitenciário que é a ressocialização.

O regramento internacional que estabeleceu as regras mínimas para tratamento dos presos conhecido como Regras de Mandela[10], oficializada pelas Nações Unidas em 1995, dispõe na regra 91 que “O tratamento de presos sentenciados ao encarceramento ou a medida similar deve ter como propósito, até onde a sentença permitir, criar nos presos a vontade de levar uma vida de acordo com a lei e autossuficiente após sua soltura e capacitá‑los a isso, além de desenvolver seu senso de responsabilidade e autorrespeito.”.

Um sistema penitenciário em situações degradantes, com superpopulação, sem condições de higiene, trabalho e sem visita ao núcleo familiar, já reconhecido como Estado de coisas inconstitucional, não atinge o objetivo da ressocialização e muito menos de capacitar o apenado criando a vontade de respeitar as leis penais.

O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça criarem recentemente o comitê para enfrentar violação de direitos no sistema prisional por meio da portaria conjunta MJSP/CNJ nº 8, de 16 de abril de 2024.[11] Dentre as atribuições do comitê merece especial destaque o art. 3º, inciso III, que trata do “o fomento e a qualificação de políticas de alternativas penais e monitoração eletrônica de pessoas, bem como a articulação de estratégias de justiça restaurativa, como forma de racionalizar a porta de entrada do sistema prisional”.

Essa preocupação do CNJ e do MJ de fomentar a porta de entrada, aliada ao já declarado Estado de coisas inconstitucional declarando o descumprimento das regras mínimas para tratamento dos presos, justificam a edição de um decreto de indulto mais amplo, devendo se restringir apenas aos crimes hediondos e aqueles cuja impossibilidade decorre do próprio texto constitucional.

clementia principis deve servir para moderar a força oposta do legislador de forma a não permitir a aumento significativo a população carcerária, impedindo que o país alcance o número assombroso de 1.000.000 (um milhão) de presos, permitindo a comutação da pena aos apenados condenados por crimes sem violência ao grave ameaça sem qualquer limitador máximo de pena, bem como aqueles condenados por tráfico privilegiado, levando em conta que a grande massa da população está condenada por tráfico de drogas.

Está nas mãos do chefe do Poder Executivo exercer o contrapeso ao Estado de coisas inconstitucional balanceando a população carcerária e os anseios da sociedade por uma sociedade cumpridora das regras penais.

Notas e referências:

[1] Cf. Art. 84, XII, da Constituição Federal.

[2] Decreto de 12/04/2017. Indulto especial do dia das mães editado pelo Presidente Michel Temer.

[3] Decreto nº 9.370 de 11/05/2018. Indulto especial do dia das mães editado pelo Presidente Michel Temer.

[4] ADI 2.795-MC/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, j. 08.05.2003. DJ 20.06.2003.

[5] Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal.

[6] https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/cidadania-nos-presidios/#:~:text=Os%20dados%20apresentados%20revelam%20que,mil%20vagas%20no%20sistema%20carcer%C3%A1rio.

[7] STF, ADPF 347 MC, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. em 09/09/2015.

[8] Simão, Diego de Azevedo. Lei de execução penal comentada e anotada – 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido, 2022. P. 400.

[9] Recurso Extraordinário nº 1235340.

[10] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf. Acesso em 18/09/2024.

[11] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/04/portaria-conjunta-mjspxcnj.pdf

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